Talentos Presos na Infancia

O Fernando tem 49 anos, adora desenhar e pintar mas nunca teve coragem para mostrar os trabalhos que faz. Trabalha numa seguradora há 25 anos, tem um bom cargo. Em teletrabalho há um ano, casado e sem filhos, impedido de viajar, refugiou-se nas telas durante o confinamento.

-Tenho telas fantásticas, olho para os meus trabalhos e vejo uma gande evolução… tenho vontade de as mostar mas… não consigo… algo me trava desde sempre, não lhe sei explicar, até poderia desenhar por prazer, sem querer expor mas , o meu sonho sempre foi expor, não por vaidade mas porque entendo que arte é para partilhar…

-Nunca mostrou as suas telas a ninguém ? – perguntei

-Só aos meus familiares mais proximos e a dois amigos mais chegados… Poucas pessoas sabem que pinto, os meus colegas de trabalho nem sabem que o faço!

– Não encontra nenhuma justificação para este comportamento ?

-Não faço ideia de onde isto veio… nunca percebi este receio em mostrar as minhas coisas…

Convidei o Fernando a fazer um exercicio. Fizemos uma viagem à sua infancia e sem perceber como nem porquê, foi parar a uma memória de infancia, na escola primaria. Era o ultimo dia de aulas do quarto ano. A professora fez um dia especial para os pais conhecerem os trabalhos dos filhos ao longo do ano. Fernando descreveu-se como estando feliz, ansioso, inquieto, este era um dia muito importante, os pais tinham um enorme orgulho no seu talento para o desenho e ele era um dos melhores da turma , estava contente …

Pedi ao Fernando que me descrevesse o momento:

-Estou na sala de aula à espera que os pais cheguem … chamei a professora… estou e pedir-lhe para ir à casa de banho…. ela diz-me que não posso ir à casa de banho… tenho de esperar…. disse -lhe tudo bem, eu aguento …

Nesse momento durante o exercicio, sentado no cadeirão o Fernando começa a engolir a seco e as lágrimas a correr-lhe pela cara… sugiro que se acalme … que faça uma respiraçao mais profunda …após isso… ele continua a observar aquele momento na escola primária:

-estou a sentir uma dores grandes, nunca tive isto, estou muito aflito, voltei a pedir que me deixe ir à casa de banho …mas a chegada dos pais à sala interrompe o meu pedido , a professora também está nervosa … fico contente de ver os meus a pais … e começam as apresentações, chega a minha vez de apresentar os trabalhos … começo a chorar muito …não consegui…

Neste momento no gabinete, o Fernando começa a chorar compulsivamente …e a apertar as pernas uma contra a outra… mais uma vez pedi que respirasse fundo e que se lembrasse que está tudo bem… mais calmo… continua a descrever-me o momento…

-Fiz chichi pelas pernas abaixo e como estou de calções todos repararam… e estão a olhar para mim… estão todos virados para mim a olhar para a poça que está no chão da sala de aula…

-Como está? – perguntei

-Estou a chorar e a minha mãe veio ter comigo, saí com ela …não quero ver ninguém, é bom estar com ela… só quero sair dali… o meu pai seguiu-nos, diz-me que não faz mal …viemos embora ..os desenhos ficaram lá… o meu pai repete que não há problema, vamos mudar de cidade e eu de escola, nunca mais vou ter de ver ninguem…mas os meus desenhos ficaram lá…e…

Dentro da sessão aquele homem /menino , continua a chorar. Fazemos algumas respiraçoes e quando está um pouco mais calmo perguntei:

-Quer ir buscar os seus desenhos?

-Sim quero… ! – respondeu sorrindo

-Então peço-lhe que se coloque de frente para o seu pequeno Fernando de dez anos e pergunte-lhe se ele quer ir buscar os desenhos consigo .

-Sim ele quer… e está contente com essa hipótese … – respondeu

-Antes de ir… abrace esse perqueno Fernando e diga-lhe que vai correr tudo bem, que já é crescido e forte , já sabe mais algumas coisas , que também precisa de resgatar os desenhos e precisa dele para o fazer…

-Sim ele quer ir… está a apertar me a mão com força….

E de olhos fechados e acompanhado do seu pequeno Fernando, fez o percurso até à escola… entraram na escola… na sala de aula, foram buscar a pasta do desenhos, que ainda estava na secretária.

-Que engraçado – relatava-me- ficaram à minha espera …

-Talvez à espera de serem expostos… quer faze-lo agora ?

-Sim quero… mas antes precisamos de fazer outra coisa…!

Dei -lhe tempo para que o fizesse o que entendesse, com o seu pequeno Fernando…

No fim da sessão o Fernando contou-me que não sabe o que se passou , mas esteve mesmo na sala de aulas, que a coisa que precisou de fazer antes de entrar, foi ir com o seu pequeno Fernando à casa de banho e depois disso sim… Penduraram os desenhos na parede da sala, para que todos os pudessem ver…disse-me que não entendia como nunca tinha percebido o que o bloqueara…. obviamente que já sabia que ansiedade mexia com o seu aparelho urinário…sempre que ficava ansioso ficava descontroladamente aflito para ir à casa de banho e que claro a partir de agora… antes de qualquer exposição, só tinha de ir à casa de banho … e aquele momento tinha ficado registado como um alerta … Não estava zangado com a professora, pois sabia que numa situação normal teria aguentado mas naquela situação com a ansiedade o corpo respondia de forma diferente… Disse-me ainda que enquanto colavam os desenhos, falou com o seu miudo, dizendo-lhe que está tudo bem com as pessoas, afinal se alguem faz chichi pelas pernas abaixo em publico é normal que todos olhem … eu se calhar tambem olhava …e isso não quer dizer não goste das pessoas … ficamos envergonhados… mas agora ja sabemos como fazer para não voltar a acontecer….

Talvez um destes dias receba o convite para a inauguração de uma exposição.

O Fernando pediu-me para partilhar esta história, porque achou incrivel como algo tão simples mudou as suas crenças de um dia para o outro… E assim é ás vezes… outras precisamos de mais tempo de investigação … mas chegamos lá…

http://www.orientacaosistemica.pt

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